Lá onde o turbilhão se faz síntese


Grandes telas no formato de 1,80 x 1,30 m. onde o azul e o amarelo saturam o campo pictórico, disputando espaço com a intenção caligráfica de acordo com a qual os arabescos contrapõem-se ao silêncio da geometria e convivem com ele; grandes telas em que o negro luta por atingir a vibração da laca e, portanto, supõem uma arqueológica investigação do dado cromático; grandes telas em que o caos e a hierarquia tentam um equilíbrio que sempre se manterá instável e onde há luta para que a beleza não lhe rompa e que se esforça por manter a tessitura dos signos fora do alcance do estético, do elegante. Pintura vigorosa, agressiva, impactante, que usa o pincel e a espátula na busca dos valores plásticos.

Pela primeira vez na arte catarinense o tema subjacente da vida e da morte foi concebido com tanta intensidade, com tanta energia questionadora, com tanta eficácia visual. Pintura metonímica da qual não se alheia um toque de irreverência. Pintura eqüidistante entre o ilusivo e o alusivo. Dessa vez o símbolo escolhido foi a aranha, acompanhado pelo símbolo da amarra, de que a teia (que a aranha tece) é, por sua vez, alegoria. Teia que pode ser abrigo ou armadilha. O tema da vida / morte se insere no da transformação, que supomos ser o fulcro simbólico da existência. Por isso a transformação faz parte do método das telas Loro. Nelas a narrativa visual se instala, instavelmente, no limiar do abstrato e do figurativo, em meio ao debate entre o espontâneo e o controlado, e ali convive com outra contradição, tensionada e propícia às pulsões do ritmo: a caligrafia, amarra, também. A caligrafia se põe como teia ambivalente da comunicação; por seus desvãos os conteúdos se escondem e se revelam, em ocultamentos / epifanias que destilam a contradição de pensar; a contradição de sermos, na natureza, intransparentes e, na sociedade, contingentes.

Também a pintura de Loro se encontra no limiar da reflexão e da fantasia divinatória; no do arbítrio e da condenação. A amarra, como grande parte dos símbolos, tem dois sentidos e, assim, equívoca, numa perspectiva agônica, isto é, de conflito, tanto pode sugerir a prisão quanto a libertação do objeto considerado. Objeto este que, no caso, mais uma vez é o sujeito, criador ou fruidor. O homem. Fragmentado. Humano. Desumano.

O método, que alude à tal fragmentação, nos remete à formação do pintor, em Nova Iorque, na Art Students League, onde teve contato com a complexidade implícita no trabalho pictural em tempos recentes. Na série que Loro nos apresenta podemos encontrar afinidades com passadas linguagens. Entre elas, não seria arriscado incluir a de Pierre Alechinsky, criador de uma fronteira de onde sairia Pollock. Isto, para não mencionar o futurismo de Boccioni. Considerando-se o modo caligráfico, que consiste na combinação do ato de pintar com a escrita, também é legítimo considerar as tangências, que incluem grafismos diversos, que vão do contemporâneo Colin Mc Cahon e dos graffiti e dos mangás até propostas que antes destes exemplos ancoram no tardio modernismo. Refiro-me aos crípticos (alfabetos) de Capogrossi, ou aos respingos textuais de um Cy Twombly, para citar apenas esses. No caso de Loro a caligrafia se embrenha na superfície pictórica. Se o texto continua a ser um modo de expressão, está ali para problematizar a leitura, para perturbar a certeza, para manter a descontinuidade. Por isso a letra vai perdendo seu caráter declarativo e de manifesto, para ser apagada, e o que sobra dela são vestígios. Mas de recessivo, seu caráter passa a dominante, porque, cifrado, não deixa de ser o símile que mais se adequa à desorganização de nossa vida, ao desmantelo de nossa segurança. Textos – paradoxos, que perderam seu caminho “estourados” pelo artista.

A cada amarração corresponde uma desamarração. E, se as formas e os espaços se quebram para seguir a fragmentação do mundo, o pintor mantém, exigente, a acuidade da forma, respeitando as interligações entre retas e curvas, propondo uma clareza de linha compositiva que, para comparar, se encontra nos antípodas da confusão empastada do mexicano Alberto Girondella, também envolvido com o tema da incomunicabilidade.

É nessa altura que surpreendemos em Loro, para além do jogo entre paciência e ansiedade, e para além da luta contra o evocativo, para além da desmontagem da figura, e apesar da organicidade ferida, as fissuras por onde penetra a simpatia pela natureza naturante, insinuada ora numa vela de barco, ora num feixe de bambu, numa raiz, ou no terreno de restinga por cima do qual vive o artista, nos campos marinhos do Rio Tavares. Na verdade, são passagens que lembram inspirações barométricas sentidas mais na pele do que pelas antenas da perquirição. Mais uma vez um conflito: agora entre um pretenso “espírito natural” e a reflexão. Telas seccionadas, espaço não apenas distorcido, mas estilhaçado. Trabalhando para conciliar cultura e natura, comprometido com o movimento da água e a corporeidade da terra, Loro, como a aranha de sua saga, tece a própria teia. Amarrando letras, estourando volumes e mitologias, arriscando-se na investigação e no manejo das “cores perigosas”, temeroso ante o brilho e fascinado por ele, recorrendo à escrita a uma só vez epigráfica e subgráfica, a pintura de Loro corresponde a um desafio. Tal qual o da aranha, que na lenda grega representa o mortal que se confronta com a divindade, cumprindo, assim, uma forma de hybris, e está no centro de uma dialética: a do real e a do possível.

Categorizar a arte de Loro no panorama catarinense parece-me de pouca relevância. Pintor cosmopolita, pronto à antropofagia, disposto a qualquer releitura de linguagem que pode incorporar com ares de paródia, a sua individualidade, paralelamente a tal aptidão, se conquistou por uma busca muito consciente dos processos da pintura. Estes o levaram a captar o real, que aqui se descortina na seguinte antinomia eterna: o humano e o desumano. A teia, potente e frágil, vira rede e a rede transmuta-se em vela. Na busca, o caos repousa; a grelha partida se faz inteira; o labirinto se abre. Lá onde o turbilhão se faz síntese.

| João Evangelista de Andrade Filho |